Os sapatos estavam todos lá, juntos, em círculo, como numa reunião clandestina, conspirando. A bota grande marrom e o sapato preto de bico quadrado conversavam com as sandálias havaianas, a preta esquerda meio virada de lado, `a vontade, os dois pés da azul, um de frente pro outro, decidindo, em tom conspiratório, sobre um novo lugar para descansarem.
Obviamente eles não queriam voltar para as gavetas, porque lá era muito escuro e úmido, mas também não estavam gostando de ficarem jogados pelo quarto, raramente voltando aos seus lugares, que era nas prateleiras e embaixo da escrivaninha. Os mocassins pretos que, embora fossem novos, já estavam com a boca aberta como um jacaré, achavam que qualquer lugar seria bom; eles eram contra essa manifestação por uma casa fixa. Eles se sentiam super bem em ficarem soltos, jogados pelo chão do quarto ou em qualquer canto da casa, assim de qualquer jeito, meio virados, ou até mesmo de cabeça para baixo. Na verdade, era tão relaxante ficar de cabeça para baixo!!!... mas essa não era a opinião geral.
Já os sapatos velhos, coitados, estavam todos trancados nas gavetas há tempos, sem ver a luz do dia. Como deviam estar!... muito mofo, muita tristeza. E nem tinham como participar da reunião, embora estivessem escutando tudo, por trás da porta veneziana do armário.
- Bem, acho que além de lutarmos por um lugar mais definitivo e... iam falando em coro o par de sandálias de camurça marrom quando foram interrompidos por uma das botinhas de couro, que era toda elétrica :
- e sem poeira!, já estou deixando de ser marrom e ficando cinza de tanta poeira, disse ela, nervosa,
- e sem poeira, repetiram em uníssono o par de sandálias de camurça, mas conhecidos como "Os Camurcinhas"; continuando, acho que devemos pensar também nos nossos amigos, esquecidos lá nas gavetas... temos que pensar numa solução para eles também.
Ouvem-se sons de saltos batendo no chão. Eram os sapatos de dentro do armário, aplaudindo.
- Para mim o problema maior é que nunca nos colocam de volta nos nossos lugares, porque espaço até que tem, e até que é bem bonitinha essa escrivaninha, com seus pés palitos...e é ventilado, nem acho que tenha tanta poeira assim. Acho muito difícil acharmos um lugar melhor!, diz, enfático, o sapato de salto quadrado marrom `a botinha, conhecida como "Curtinha" por ser uma bota de cano curto.
- Bem, deveríamos então desistir de brigarmos por um novo lugar e mudar nossa reivindicação? É, realmente acho que você tem razão, é muito chato ficar largado no meio do quarto, de qualquer jeito!
- E `as vezes nem temos essa sorte! Já me deixaram largada no banheiro por uns cinco dias!, reclamou Preta Di, nome menorzinho que ela usava pra não terem que falar seu nome inteiro, que era "Sandália Havaiana Preta Pé Direito'.
Eram dois pares de sandálias havaianas, um par de pretas e um par de azuis. Havia acontecido uma estória de amor platónico entre elas; a azul pé esquerdo e a preta di haviam se apaixonado quando, um dia, por descuido, seu dono as calçou trocando os pares sem perceber; a azul adorou a cor da preta, achou uma gracinha; e a preta ficou encantada com aquele tom de azul, tão diferente! Mas o chato é que ninguém poderia saber, porque além de provocar ciúmes nas outras duas sandálias, seria um escândalo na sociedade sapateira um namoro entre sandálias de cores diferentes! Então era um amor quase secreto, escondido.
Já os Camurcinhas estavam sempre juntos, rindo, lá-lá-lá. Pareciam estar, no íntimo, sempre cantando musicas secretas que só os dois sabiam, que só os dois ouviam; eram sempre muito contentes, acho que porque eram um misto de sandália e sapato, um pouco diferente dos outros, talvez, embora não chegassem a ser exóticos; eles eram até muito elegantes. E eram novos, muito novos; ainda não tinham vivido muito a vida de sapato.
Enquanto isso, deixemos os sapatos confabulando, e vamos conhecer os vestidos, suas histórias, embalados em outro tempo, sempre relembrando e sonhando, mas sem fazer muita coisa hoje em dia. Tem a história do vestido de bolinha, a história do vestido decote "diretório", do compridão de seda cor de telha, e muitas e muitas outras...
( arrumando as gavetas, achei esse começo de estória que já tinha esquecido da existência!).
quarta-feira, maio 07, 2014
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